segunda-feira, 20 de junho de 2016

CULTURA E RELIGIOSIDADE

*Mauro Ferreira de Souza é Bacharel em Filosofia e Teologia (Universidade Mackenzie), Direito (UNIB), Especialista em Filosofia Contemporânea e Historia pela (Universidade Metodista) e Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Mackenzie São Paulo. Doutorando em Filosofia.
          Currículo CNPQ:  http://lattes.cnpq.br/6652104071439857

Desde a colonização, o catolicismo, tendo construído seus fundamentos, embora frágeis, logo se fundiram com o encontro de outras culturas religiosas e étnicas: notadamente a indígena e a africana. A primeira, com cerca de cinco milhões, compondo o vasto campo do território nacional, sendo um mosaico cultural, lingüístico e especificamente religioso. Conquanto, era natural que pela dominação forçada, muitos indígenas e africanos aderissem ao catolicismo de colonização.
A força motriz do catolicismo português, em vários aspectos, não sobrepôs às duas culturas, mas ao contrário, se apropriou delas e, com isso, construiu uma identidade nacional. A opinião de Pereira (2000) é a de que os portugueses colonizaram e deram apenas a marca religiosa fundamental ao país mas, num processo de acomodação das culturas subalternas. Para esse autor, o modelo de cristandade brasileira não consolidou a universalidade católica, mas absorveu, pela força de coesão, as diversidades étnicas. Para ele, o que houve foi um processo de aculturação ou sincretismo.
A acomodação e a assimilação tornaram-se fenômenos aculturativos, surgindo, daí, no Brasil colonial, uma cristandade de terceira categoria. A aculturação segundo ele, formou uma síntese assimilativa e sincretista que, por sua vez, formou no Brasil um catolicismo nacional desprovido da ideologia tridentina. Nessa perspectiva, interpreta o modelo pluriétnico brasileiro como sincretista, assimilacionista e mescigenacionista. Assim, Pereira segue a linha da acomodação das culturas que se fundiram para formar a identidade brasileira, especialmente religiosa. 
Nesta perspectiva, diz:
                                         A grande vocação histórica da sociedade brasileira é aceitar, sem maiores                                         resistências, as influências estrangeiras, evidenciadas no sincretismo cultural                                        do país. [...] Nesta linha de interpretação, a alegada receptividade histórica da                                     sociedade brasileira em relação ao “outro” é cientificamente captada como                                             uma tríplice e histórica vocação da sociedade nacional em anular o                                                        “diferente” (PEREIRA, 2000, RevUSP-46, p.9).
Dada essa fusão cultural e religiosa, o catolicismo resultou em uma religião mais popular do que tridentina[1].
                                   O catolicismo popular se mantém leal à Igreja Romana, lealdade facilitada pela transigência de bispos e vigários com práticas atridentinas infiltradas e pela tranqüila ignorância popular das conseqüências morais, litúrgicas e devocionais do modelo tridentino. [...] Houve conflitos do catolicismo tridentino com o regalismo; mas com a religião popular houve competição, acomodação e, até, assimilação (RIBEIRO, 1973, p.64).
Voltando a teoria de Pereira (2002), o catolicismo tomou uma identidade sincrética como se verifica até os dias de hoje. Isso ocorreu não somente por razão da falta de padres, mas por um processo de acomodação ou assimilação. Esse estudioso defende ainda que este processo assimilacionista corroborasse com processo de mestiçagem. Nesta perspectiva, defende que o processo de mestiçagem ajudou a engrossar o caldo sincretista brasileiro. Os filhos dos negros com brancos, ficaram em um fogo cruzado, e se a mãe fosse negra os filhos assimilavam mais os aspectos religiosos africanos, mas sem deixar de ir a uma paróquia católica. A folclorização e a magia especialmente da cultura negra penetrou nos brancos e amistiçados dos índios, formando uma imagem não somente interiorizada, mas estereotipada nas manifestações públicas sejam civis ou religiosas.
                              Os brasileiros negros ou brancos, de camadas menos privilegiadas, vivem esse universo de símbolos, ritos e mitos, como algo integrante de suas vidas, de seu cotidiano, sem pretensões maiores, sem outras interrogações. Vivem-no naturalmente. (PEREIRA, RevAntropologia-26, 1983, p.96).
Em suma, a identidade religiosa nacional logo estereotipou em um contexto social de mestiçamento fundamentalmente inegável. Este processo de mestiçagem ou miscigenação influiu diretamente na identidade religiosa.
A história do Brasil é uma história de mestiçagem, explicada pelos cruzamentos de três raças, duas das quais classificadas por critérios de inferioridade biológica e cultural (negros e índios). [...] Romero ressalta a colaboração dos negros e índios na formação do país e destaca o peso da cultura e do caráter lusitano, bem como seu “pendor” para o cruzamento- “produtor dos mestiços de todos os graus que formam a grande maioria da população brasileira”. Para o autor, a população mestiça, majoritária (PEREIRA, 2002, RevUSP-53, p.130).
Nesta mesma perspectiva, Ortiz (2006), defende que o Brasil é o produto da mestiçagem. Ele quando fala da “Cultura Brasileira e Identidade Nacional[2], que, aliás, é o tema de sua obra, parte da perspectiva de que o sincretismo se consolidou por existir uma memória coletiva africana, ou um imaginário religioso que conservou a sua autonomia, mesmo que o elemento sincrético provenha de uma fonte exterior a ela.
O catolicismo adaptou-se à cultura local? Não há dúvidas. Sem a intenção de reduzir o conceito de cultura popular apenas às adaptações ou rejeições da religião dominante, não há como não relacionar cultura brasileira e catolicismo sincrético. Este último assimilou, de forma muito flexível, alguns traços dos que pretendia doutrinar. Fato é que o catolicismo encontrava-se totalmente submerso nas características culturais dos brasileiros e não teve, ou não quis ter muita força para alterar seus principais traços. Afirmar que o catolicismo estava aliado à cultura é dizer, nas palavras de Bittencourt (2003, p. 41), que ele aceitou, sem problemas, a “presença e influência da Matriz Religiosa Brasileira”, sendo que esta, prossegue o autor, “nunca representou um problema a ser enfrentado; quando muito representou apenas uma dificuldade a ser contornada sutilmente”.
O que Bittencourt (2003) chama de “Matriz Religiosa Brasileira” é exatamente esse núcleo básico de religiosidade formado a partir do sincretismo de elementos encontrados nas religiões específicas das etnias. Este núcleo é o resultado do encontro das diversas religiões sob o fenômeno da mestiçagem. Ele influenciou não só a religiosidade do brasileiro, mas também traços de sua cultura e personalidade nas várias áreas da sociedade e do cotidiano. Portanto, para explicar quais elementos compõem a Matriz, Bittencourt recorre à idéia de sincretismo. O caminho percorrido para a formação da Matriz é o da formação histórica da nacionalidade:
Com os colonizadores chegam o catolicismo ibérico (reconhecidamente singular) e a magia européia. Aqui se encontram com as religiões indígenas, cuja presença irá impor-se por meio da mestiçagem. Posteriormente a escravidão trouxe consigo as religiões africanas que, sob determinadas circunstâncias, foram articuladas num vasto sincretismo. No século XIX, dois novos elementos foram acrescentados: o espiritismo europeu e alguns poucos fragmentos do Catolicismo romanizado (Bittencourt, 2003, p. 41).
Bittencourt tem seus pressupostos consubstanciados na perspectiva de Holanda (1978), que ao analisar a cultura brasileira e sua formação, afirma com propriedade a influência da religiosidade na formação desta cultura.
As contribuições de Holanda revelam o olhar do protestante sobre essa religiosidade. Holanda (2002, p. 149) relatou dois trechos de “visitantes protestantes que aqui estiveram”, Kidder e Thomas Ewbank, que comentaram sobre as formas cúlticas da religiosidade, chamada por eles de nativa. Holanda assim escreveu (2002, p. 151):
Em verdade, muito pouco se poderia esperar de uma devoção que, como esta, quer ser continuamente sazonada por condimentos fortes e que, para ferir as almas, há de ferir primeiramente os olhos e os ouvidos. “Em meio do ruído e da mixórdia, da jovialidade e da ostentação que caracterizam todas essas celebrações gloriosas, pomposas e esplendorosas”, nota o pastor Kidder, “quem deseje encontrar, já não digo estímulo, mas ao menos lugar para um culto mais espiritual, precisará ser singularmente fervoroso”. Outro visitante, de meados do século passado, manifesta profundas dúvidas sobre a possibilidade de se implantarem algum dia, no Brasil, formas mais rigoristas de culto. Consta-se que os próprios protestantes logo degeneram aqui, exclama. E acrescenta: “É que o clima não favorece a severidade das seitas nórdicas. O austero metodismo ou o puritanismo jamais florescerão nos trópicos”.
A citação de Holanda revela traços marcantes da forma de expressão religiosa brasileira, que, na data referida, já se encontrava oficialmente sincrética. A partir deste texto, um forte contraste é notado entre as práticas protestantes e católicas: o caráter festivo das celebrações cúlticas em oposição ao rigorismo do culto puritano contra a liberdade de expressão.
Holanda destacou as características pontuadas sempre em relação ao tipo de catolicismo aqui praticado. Ou seja, Holanda descreveu uma religião oficial, já moldada sobre as especificidades nacionais, ou seja, um catolicismo sincrético. O autor analisou o resultado dos entraves entre as religiosidades específicas das etnias e a dominação que a religião oficial exerceu sobre tais formas. A importância dessa análise é a percepção concedida pelo autor de uma religião oficial que mantém as características culturais do povo e que por esse motivo é chamada de “nosso velho catolicismo”.
O “velho catolicismo” é enfocado por Holanda (1978), que examina uma das mais brilhantes categorias culturais do brasileiro: a “cordialidade”. O homem cordial manifestava-se também pela religiosidade. Trata-se, portanto, de um aspecto cultural de grande relevância que permeou toda a relação do brasileiro com o sagrado e com a divindade. A cordialidade produziu os aspectos intimistas e anti-ritualísticos que estão entrelaçados com a expressão religiosa.
O português colonizador, mesmo com os aspectos da cordialidade, olhava com desconfiança o “campo”, expressão bourdieuriana (1983), e nesta perspectiva não tardou de consolidar seu poder hegemônico. Segundo Bourdieu (1983), as lutas dentro do campo religioso são desiguais, pois os que detêm o poder e a autoridade- o capital consolidado, é que molda o campo e lhe dá sentido. Por isso o português embora em bases frágeis construiu o ideário religioso. Nesta perspectiva, Souza (1986) é da opinião de que o mesmo moldou aqui uma religiosidade multifacetada, pelo poder dominante e como ideário religioso implementa seu interesse. Pondera mais:
A América era muito mais filha da Europa do que jamais o foram a Ásia e a África; mas era Europa, e ao mesmo tempo a não Europa; era antítese geográfica, física e muito logo política da Europa- na metrópole-podiam aqui- colônia- mais do que e nenhum lugar tender à polarização [...} mas do que disse respeito à humanidade diversa, pintada de negro pelo escravo africano e de amarelo pelo indígena, venceu a diferença: infernalizou-se o mundo dos homens em proporções jamais sonhadas por toda a teratologia européia – lugar imaginário das visões ocidentais de uma humanidade inviável. (SOUZA, 1986, p.31,32).

Alguns espíritos mais atentos do clero, não tardaram, contudo, em adaptar a religião aos anseios populares, que neste processo de acomodação preparou-se para fundir as culturas religiosas em uma síntese harmoniosa. Daí tem um catolicismo sincrético, mas sempre subserviente aos bispos e ao poder civil que neste caso era subserviente da Igreja. A religião acomodaria à cultura e etnia desde que não ferisse os interesses da Corte.
Com elementos indígenas e africanos, a religiosidade do brasileiro tornou-se popular e cada vez mais se distanciava dos cânones tridentinos.
A religião popular absorve celebrações piedosas de liturgia africana, ou indígena; adota o tempo sagrado do ciclo de estações do hemisfério sul; separa seu espaço sagrado; escolhe símbolos, valores, crenças e sanções ou observa-os. [...] O puritanismo litúrgico, tanto de regalistas como de tridentinos tenta expurgá-las. Acaba se acomodando ou assimilando-as. [...] Por volta de 1840, em uma vila paulista, Kidder registra: “Disseram-nos que também nesse lugar, muitos dentre os moços demonstravam pouquíssimo respeito pela religião, devido à influência de obras profanas e outras causas diversas. A desculpa de quase todas as faltas era sempre a mesma: eu não sou católico. O povo em geral aceita os dogmas da igreja, mas raramente cumpre seus mandamentos, salvo quando a isso obrigados, principalmente pelos pais, ou em artigo de morte. [...] Muita gente tinha externado de pautar sua vida como bem entendesse, fosse qual fosse a decisão da autoridade eclesiástica” (RIBEIRO, 1973, p.61,62,70).
As festas religiosas celebradas nas paróquias ou nas ruas eram mais uma festa popular do que uma cerimônia religiosa, ou missa. A religiosidade popular perpassou todo regime colonial e têm-se resquícios até os dias de hoje.
Embora com essa pluralidade e sincretismo, a Igreja Católica assumiu uma atitude firme no sentido de fazer valer sua fé, suas regras e seu domínio. Era uma Igreja que se via dentro de uma "guerra santa" contra todos aqueles que não acreditavam nela. E numa guerra, na maioria das vezes, as armas são as violências e as repressões. Essa Igreja guerreira via como possíveis inimigos todos aqueles que não eram católicos, e os combatiam duramente.
Freire (1980) aponta as características da colonização do Brasil pelo viés da religião por meio dos jesuítas. Sua opinião é a de que eles idealizaram e implementaram no País um modelo de teocracia.
A nossa verdadeira formação social se processa de 1532 em diante, [...] O oligarquismo ou nepotismo, que aqui madrugou, chocando-se ainda em meados do século XVI com o clericalismo dos padres da Companhia. Em oposição aos interesses da sociedade colonial, queriam os padres fundar no Brasil uma santa república de "índios domesticados para Jesus" como os do Paraguai; seráficos caboclos que só obedecessem aos ministros do Senhor e só trabalhassem nas suas hortas e roçados. (FREIRE, 1980, p.60).
O clericalismo dos padres da Companhia foi colidindo com as oligarquias regionais, consolidando uma colonização que na perspectiva de Freire foi "semi-eclesiástica" e "semifeudal", o monopólio católico romano atrelado à instituição político-religiosa do padroado. Essa interpretação de Freire faz coro com os pronunciamentos e reflexões do intelectual da época do início da República, Romero (1851-1914), que, em seus artigos publicados no Jornal "Diário de Notícias", é da opinião que: "... nossa nação foi formada sob o regime teocrático, ajudado pelos jesuítas." Uma outra opinião semelhante a de Freire e de Romero é  a do sacerdote romanista Maria (1950, p. 33,34), que diz:
[...] as missões jesuíticas eram complicadas pelo plano que os discípulos de Loiola[1] tinham que dominar o mundo não só com as armas espirituais, mas também com os instrumentos mundanos. [...] queriam criar Estados ou nações jesuíticas. [...] Nóbrega e Anchieta, e os fundadores das missões ou reduções do Brasil, cooperaram com os capitães nas guerras contra os indígenas.
O jesuitismo atrelado ao regime de padroado, segundo Gomes (2000, p. 37), assumia a legitimação tanto dos atos como dos interesses da Coroa no Brasil. Nesta perspectiva diz:
O padroado sacramentava a união entre a Igreja e o Estado lusitano como irmãos siameses; à medida que o rei se tornava, ao mesmo tempo, figura da política e religiosa, a Coroa lusa incorporava os símbolos tanto da Igreja como do Estado. A conseqüência mais direta dessa união foi o princípio da íntima colaboração entre o poder político e eclesiástico.
Daí se vê que o poder religioso foi o mais importante instrumento de legitimação do Estado. Esta é a tese defendida por Peter Berger (1985), estudioso da religião. Para ele, as instituições políticas e governamentais teriam garantida sua legitimidade pelo fato de a religião transformar o governo civil em um fenômeno sacramental[2].

Nessa perspectiva afirma:
[...] a estrutura política simplesmente estende à esfera humana o poder do cosmo divino. [...] A autoridade política é concebida como agente dos deuses, ou idealmente até como uma encarnação divina. [...] as instituições políticas e sociais teriam garantida sua legitimidade pelo fato da religião infundir-lhes um status ontológico de validade suprema. O governante fala em nome dos deuses, ou é um deus e obedecer-lhe equivale a estar em relação correta com o mundo dos deuses. (BERGER, 1985, p.42).
O que é fundamentalmente importante no pensamento de Berger, é que a religião servirá para sustentar a legitimação do Estado e conseqüentemente da sociedade. O estilo de vida e concomitantemente de poder, têm a mediação da religião. A vida sacralizada e o poder sacralizado dotam o Estado e, por conseguinte a sociedade de uma legitimidade, pois esta sacralidade está apoiada em convicções profundas de religiosidade. Os mitos, os dogmas, as doutrinas, todos consubstanciados num espírito de coesão social fornece bases para os valores morais e coercitivos, constituindo de forma muito exaustiva no modelo de sociedade pela religiosidade.
Berger (1985) afirma que as instituições políticas e governamentais teriam garantida sua legitimidade pelo fato da religião infundir-lhes um status ontológico de validade suprema, "o poder humano e o governo se tornam fenômenos sacramentais". Era nesta perspectiva que trabalhava o ideário católico tridentino, pois a união Igreja-Estado estava no projeto de poder colonizador.
Antônio Rubbo Müller (1958) quando formulou sua teoria de sociedade, afirmou que a organização humana baseia-se na existência de catorze sistemas sociais específicos dentre eles, o "sistema religioso", o qual afeta profundamente todos os demais. No caso do Brasil desde o descobrimento até a proclamação da República predominou o "sistema social religioso". O pensamento de Müller está em consonância com a proposição do cientista político Gramsci, quando defende que a Igreja como instituição serviu e ainda serve como "aparelho ideológico de Estado". Dentro desta perspectiva, predominou no Brasil desde seu descobrimento colonizador até o final do século XIX, um comando unificado de uma ideologia dominante, em que a Igreja reproduzia a infra e superestrutura política, econômica e ideológica, e o Estado era apenas e tão-somente uma máquina de sujeição e reprodução do "sistema social religioso".
Para Laveleye (1875), a religião exerce sobre os homens uma ação tão profunda que eles sempre se inclinaram a dar à organização do Estado formas tomadas da organização religiosa. Nesta perspectiva, diz:
A ação que a religião exerce sobre os homens é tão profunda que eles sempre se inclinaram a dar à organização do Estado formas tomadas da organização religiosa. Por toda a parte onde o soberano passa por ser o representante da divindade, a liberdade não se pode estabelecer, porque o poder daquele que fala e obra em nome de Deus é necessariamente absoluto. As ordens do céu não se discutem. Simples mortais não podem deixar de inclinar-se e de obedecer. Não conheço exceção a esta regra. Nos antigos impérios da Ásia, e nos de hoje, nos Estados maometanos, como nos países católicos, onde os reis reinavam por direito divino, os povos foram completamente escravizados. (LAVELEYE, 1875, p.25).
Mauus (1924), no seu "Ensaio sobre a Dádiva", reflete de modo evidente e significativo os aspectos religiosos a partir de religiões e tribos primitivas, na concepção de poder. Para ele, o poder de comando estava intrínseco à concepção transcendente, ou seja, algo mítico legitimava o chefe da tribo. Nesta mesma perspectiva, Levi-Strauss (1949), faz um estudo aprofundado da religião, e faz dela o viés para discorrer sobre os fundamentos da sociedade, especialmente em sua obra: "Estruturas Elementares do Parentesco". Tanto Mauus, Strauss e Laveleye, acenam para um estudo mais aprofundado da religião e seu relacionamento com o poder de Estado (poder civil) na sua mais profunda substância de poder.
Para Durkheim (1912), a religião ordena o caos como também desordena. Neste último caso, cabe a organização religiosa coibir a desordem com seus meios coercitivos ou como aparelho de força do Estado. Em sua obra: "As Formas Elementares de Vida Religiosa", considerada a mais importante de suas obras, estuda notadamente a religião e seu relacionamento social concomitantemente de poder religioso atrelado ao poder civil, em que traz a baila a incorporação da religião, seu simbolismo, sua estrutura de poder.
Weber (1864-1920) entende que a relação do poder religioso com o poder civil, denota uma colaboração intrínseca cujo objetivo é a domesticação das massas. O poder religioso (Igreja) e o poder civil (Estado) se refletem. O temporal põe à disposição do espiritual os meios de coação para conservar o seu poderio. Nessa relação Igreja-Estado, ambos são subservientes.
Para Todorov (1991), a espada e a missão entrelaçaram-se no grande empreendimento colonizador dos dois países ibéricos (Espanha e Portugal). Aliás, o sucesso da missão católica dependeu da capacidade e do poder do Estado, ou seja, a missão dependeu da espada. Por outro lado, o grande sucesso da colonização dependeu da missão religiosa. Na opinião da maioria dos historiadores, as motivações especialmente de Colombo e Cabral eram mais religiosas do que econômicas, haja vista que o lema empregado era "expansão do reino de Deus". Ademais, Colombo em seu diário minuciosamente pesquisado por Todorov (1991) em seu livro: “A Conquista da América: A Questão do Outro”, chega à conclusão que o mais importante era a propagação e expansão da fé católica. Registra as palavras de Colombo num Documento datado em 1502:
Esta empresa foi feita no intuito de empregar o que dela se obtivesse na devolução da Terra Santa à Santa Igreja. Depois de ali ter estado e visto a terra, escrevi ao Rei e à Rainha, meus senhores, dizendo-lhes que dentro de sete anos disporia de cinqüenta mil homens a pé e cinco mil cavaleiros, para a conquista da Terra Santa e, durante os cinco anos seguintes, mais cinqüenta mil pedestres e outros cinco mil cavaleiros, o que totalizaria dez mil cavaleiros e cem mil pedestres para a dita conquista (TODOROV, 1991, p.11).



[1]Inácio de Loiola, fundador da Companhia de Jesus, denominada e conhecida como  "os Jesuítas".
[2]Fenômeno sacramental foi a expressão usada por Berger para explicar a subordinação do poder civil ao poder espiritual ou religioso. 




[1] Tridentina: refere-se aos cânones do concílio de Trento, ou seja, ao catecismo da Igreja
[2] ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Editora Brasiliense, 8ª edição, 2006. Nesta obra, o autor dedica um capítulo à mestiçagem quando defende que o Brasil é produto da mistura não somente de raças, mas de religiões.

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